17.4.24

Memórias Minhas, de Manuel Alegre




Há dois dias (15 de Abril, segunda-feira) foi a apresentação de Memórias Minhas, de Manuel Alegre. Ontem publiquei, no Acção Socialista Digital, um texto sobre a sessão e sobre o livro. Fica aqui, para registo.

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Não é – ou, pelo menos, não é apenas – por ser o mais recente livro do Presidente Honorário do Partido Socialista que merece aqui destaque, no órgão informativo oficial do Partido, o lançamento de Memórias Minhas, de Manuel Alegre (nas Publicações Dom Quixote).
A obra Memórias Minhas, de Manuel Alegre, foi apresentada ontem, ao fim da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa sessão onde foram produzidas intervenções, sobre a obra literária e cívica do Autor, por António Feijó (Presidente da FCG), Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Soares e Jaime Gama. A encerrar a sessão, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, discursou e condecorou Manuel Alegre com a Grã-Cruz da Ordem de Camões. Manuel Alegre agradeceu a distinção, que disse ser uma surpresa, e afirmou ser esta, de todas as condecorações que recebeu, “aquela que mais fundo me toca”, “dada a minha veneração de Camões, dado o facto de Camões estar sempre presente em mim e estar sempre presente em tudo o que escrevi."
De acordo com Manuel Alegre, Memórias Minhas foi escrito como o título indica, radicalmente: de memória, de memória mesmo, de memória apenas, sem recurso a quaisquer apontamentos ou documentos. Faz justiça ao facto de o autor, na sua vida cívica e política, ter continuadamente chamado a atenção para a importância da memória para a nossa vida coletiva, da necessidade de alimentarmos de memória a inteireza da nossa pertença ao mundo.
O livro traça as raízes históricas profundas do empenhamento cidadão do autor, incluindo os liberais do princípio do século XIX, desenhando a diversidade de pertenças políticas e sociais dos seus antepassados. E vem, também e principalmente, enriquecer o património da nossa vida pública por densificar o conhecimento disponível acerca das décadas mais recentes da nossa vida como povo. Antes e depois de Abril, em campanhas decisivas como a de Humberto Delgado, na sua passagem pelo PCP e na saída provocada de forma mais imediata pela não condenação da invasão soviética da Checoslováquia em 1968, na guerra colonial, no exílio, na prisão, na adesão ao PS, na luta contra o desvio gonçalvista que arriscou levar a revolução para fora do seu impulso democrático original, na camaradagem com Mário Soares e nos momentos de aproximação e afastamento político, na crítica à Terceira Via e à tentação do socialismo democrático pelas teses neoliberais, na voz que falava de Argel pela rádio quando não podia falar cá e na voz que representou sempre uma certa ideia de esquerda dentro do PS, no militante que nunca deixou de ser e contudo protagonizou um movimento de cidadãos que passava ao lado do PS e às avessas com algumas orientações do PS, … são inúmeros os episódios que merecem ser revisitados, em mais uma perspetiva agora exposta nesta obra.
A obra contribui, também, para a nossa compreensão da personalidade política e literária de Manuel Alegre. Não tanto por incluir novidades extraordinárias acerca de factos, mas especialmente por nos abrir um pouco a janela da compreensão do modo como Manuel Alegre vê Manuel Alegre. Jaime Gama, na brilhante oração que fez na sessão de apresentação do livro, disse isso de forma particularmente profunda – e também talvez um pouco provocante – ao afirmar que Manuel Alegre escreve o romance da sua própria vida. A verdade é que, seja ao contar episódios da sua vida pessoal e familiar, seja ao focar a sua escrita em episódios da grande história contemporânea de Portugal, este livro é nitidamente obra de um grande escritor.
Aprecio, particularmente, a forma como Manuel Alegre assume que política e poesia são partes inseparáveis da sua vida, do seu modo de ser, do mundo que lhe faz sentido. Ser poeta pode ser, e no caso de Manuel Alegre é, uma forma de olhar para o mundo que não se esgota nas suas palavras nos seus poemas. Ainda numa parte inicial do livro, essa questão é apresentada em referência a sua tia-avó Maria do Carmo, que “ainda eu não tinha escrito nenhum verso, já ela, referindo-se a mim, dizia ‘o nosso poeta’” (p.28).
Há, de qualquer modo, muito em Memórias Minhas para nos dar que pensar em termos políticos, sem que possamos desligar-nos da poesia do poeta. Nambuangongo é uma referência para quem conheça um pouco da obra de Manuel Alegre. Entretanto, é-nos contado que, a primeira vez que ficou em Nambuangongo, o autor dormiu no quarto de António Arnaut, que tinha na parede duas frases, uma de Fidel Castro e outra do Papa João XXIII. A de Castro rezava assim: “Nem Liberdade sem Pão, nem Pão sem Liberdade” (p. 109). Confesso que não conhecia essa frase de Fidel Castro, e lamento que o próprio líder da revolução cubana não tenha sido fiel a tal pensamento. De qualquer modo, segundo Alegre, foi a primeira vez que falaram de “socialismo em liberdade”. E a liberdade sempre foi uma bússola para o autor de Memórias Minhas, além de ser, também, um compromisso permanente do Partido Socialista.
O que é mais marcante num livro de memórias, quando as memórias são significativas para além do círculo do próprio autor, é que as memórias não são vidas passadas. As memórias fazem as vidas presentes. Há um momento onde, literariamente, isso é expresso, de forma particularmente bela, por Manuel Alegre. Está a contar (p. 35) um período em que, ainda adolescente, viveu em Lisboa com parte da família, mas tendo o pai ficado no Norte. E diz onde viviam em Lisboa. “Morávamos na Rua Padre António Vieira, nº 1, à esquina da Castilho, em frente ao Parque Eduardo VII. A mesma rua onde hoje mora o meu amigo Jorge Sampaio, ex-Presidente da República.” Não respigo este momento pela circunstância de eu próprio viver há bastantes anos nesse mesmo recanto de Lisboa, tendo também memórias vivas – e muito saudosas – da vizinhança com Jorge Sampaio. É que, vejam bem a forma extraordinariamente literária, e poética, como Alegre diz. Em 2024, tendo Jorge Sampaio desaparecido do nosso convívio há alguns anos, Manuel Alegre diz que Jorge Sampaio está lá. Vive lá. Nós temo-lo ali. E assim se diz, tão brevemente e sem adorno nenhum, algo tão belo e tão profundo acerca das nossas vidas e das nossas memórias.
Manuel Alegre é um amante de Portugal. Mesmo quando a sua pátria era diferente da pátria dos opressores. A resistência é em si mesmo uma pátria. Eis uma ideia central neste livro. E uma ideia que ajuda a compreender o seu autor. Um autor que correu os riscos inerentes. Como disse, ontem, na apresentação: “Não me precavi.” Precisamos mais de cidadãos assim.
 


Porfírio Silva, 17 de Abril de 2024
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12.4.24

Não confunda espelhos com janelas, Sr. Primeiro-Ministro!





O editorial de hoje do Acção Socialista Digital, que assino na qualidade de diretor do órgão informativo oficial do PS, é uma reflexão focada no debate do programa do XXIV Governo Constitucional, que decorreu ontem e hoje na Assembleia da República. Para registo, deixo-o aqui transcrito.

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Não confunda espelhos com janelas, 

Sr. Primeiro-Ministro!


O Professor Alexandre Quintanilha – um renomado cientista que dedicou nos últimos anos muito do seu tempo à política ativa, tendo presidido, indicado pelo PS, mas com aprovação geral, à Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República – usa frequentemente uma adaptação de uma frase cunhada originalmente por Sydney J. Harris, que era sobre educação e, nesta nova criação, é sobre conhecimento: “A principal função do conhecimento é transformar espelhos em janelas”.


Transformar espelhos em janelas, seja propósito da educação, seja propósito do conhecimento, é muito relevante para a convivência democrática em sociedades complexas, onde as diferenças de condições de vida, as diferença de interesses (mesmo considerando apenas os interesses legítimos), as diferenças de opinião e de projeto têm de caber no plano mínimo da cidadania e do respeito pela dignidade do ser humano – e qualquer esquecimento dessa realidade fará perigar o pluralismo sem o qual as sociedades abertas sucumbem. Transformar espelhos em janelas – transformar o fechamento em abertura – terá de ser, então, também, um caminho a fazer pela ação política.


Ora, o debate do programa do XXIV Governo Constitucional, ontem e hoje na Assembleia da República, mostrou um executivo, e, principalmente, um primeiro-ministro que, ao invés do que seria necessário à República, confunde espelhos com janelas. E prefere os espelhos às janelas. Em lugar de entender o valor do empenhamento do Partido Socialista numa oposição responsável e construtiva, quer abusar desse compromisso institucional e exige ao PS que seja uma oposição domesticada. Em lugar de entender que a atitude do PS é exigente, para si próprio e para o Governo, porque requer maturidade e capacidade de compromisso, permanente e sempre renovada, imaginativa e concreta, adota uma soberba autossuficiente para a qual não tem votos. Em lugar de entender que os portugueses que votaram no PS têm tanto direito a serem representados no parlamento como os portugueses que votaram na AD (ou nos outros partidos parlamentares), pretende que os resultados eleitorais só relevam para os deputados que suportam o governo e esquece as obrigações de representação dos deputados que foram eleitos com outros programas. Todas as janelas de diálogo que estavam em condições de serem abertas foram, com estrondo, fechadas por Luís Montenegro.


O primeiro-ministro, desde o primeiro momento do debate, tentou fechar as janelas do diálogo a que só pode estar obrigado, sendo um governo minoritário, e tratou de substituir janelas por espelhos – usando o espelho onde se olha para, sem se espantar por o seu aparente interlocutor ter exatamente a sua face, fingir que dialoga. Fala consigo mesmo e diz que dialoga. Afinal, o debate acabou com o número dois do governo, o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, a desmentir o número um da equipa. Aquilo que ontem, a abrir, Luís Montenegro dizia que era sinal de diálogo – escolher, unilateralmente, avulsas propostas dos outros para embelezar o seu programa de governo – veio Paulo Rangel, hoje, a fechar, dizer que não podia ser feito em diálogo, porque sobre programa de governo não se dialoga. A contradição vale como atestado da ineficiência da sobranceria que a AD julga, erradamente, que compensa os votos que não teve.


De forma bem diversa, e contrastante, o Secretário-Geral do PS, Pedro Nuno Santos, mostrou uma compreensão clara e aguda do que está em causa, em termos de preservação da República democrática: “Contam connosco para defender o regime, a democracia e a Constituição. Não contam connosco para o retrocesso económico, social e cultural.” E também uma compreensão nítida e lúcida do que é ser oposição responsável: “Não é só o governo que tem iniciativa, o parlamento e os grupos parlamentares também têm. Não é só o governo que quer que lhes aprovem as suas iniciativas, os grupos parlamentares também querem.” E anunciou, de imediato, cinco iniciativas parlamentares, que correspondem a compromissos eleitorais do PS. Assim, pela voz do seu secretário-geral, o PS mostra que funciona com janelas: coloca o seu contributo em cima da mesa e vai a jogo para que haja efetivo diálogo e para que saibamos quem é capaz de entendimentos concretos e palpáveis, para lá da retórica.


Ficamos – fica o país – à espera que o Primeiro-Ministro deixe de falar apenas consigo mesmo ao espelho e se chegue à janela do verdadeiro diálogo.


Porfírio Silva, 12 de Abril de 2024
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10.4.24

Acerca do conceito de família natural como arma de guerra

09:46



Os animais sem instituições e com culturas menos sofisticadas que as humanas é que têm "famílias naturais". Na sociedade dos humanos pouca coisa é regida pela "natureza" bruta- e isso é mesmo uma característica essencial da civilização. Libertados das cavernas, podemos assumir muito mais graus de liberdade nas escolhas de vida. Houve um tempo em que era quase consensual que isso era bom. Agora, alguns voltaram ao animalismo do "natural".

Sejamos honestos: não faltam exemplos de conservadores que não são trogloditas e que aceitam a liberdade das pessoas viverem a sua vida fora de "princípios" abstractos que são mantidos apenas por ideologia de controlo social. O que se passa hoje é outra coisa: há cada vez menos conservadores, e/ou pessoas da direita democrática, que tenham coragem para contrariar os reaccionários que berram muito alto e querem tomar o monopólio desse sector da opinião.

Não deixa, pois, de ser oportuno lembrar que, em matéria de liberdades individuais na escolha da forma de vida que cada um acha melhor, já houve líderes dos partidos de direita que não tinham as visões retrógradas que encontramos hoje como ferramenta central de certas estratégias políticas.



«Aliás, 1980 foi para Sá Carneiro, de facto, o ano do seu grande combate, como Homem, para lá do político, que, ironicamente, se tornou numa batalha política.

Os valores e as convenções sociais eram, então, em Portugal, ainda muito marcadamente conservadores, principalmente no universo de que Sá Carneiro era originário, bem como da sua base de apoio (de direita, católica). E o simples facto de o primeiro-ministro viver maritalmente com uma mulher, Snu Abecassis, que não era aquela com que estava ainda casado pela Igreja, foi um escândalo e considerado, por muitos, como uma afronta à moral e à religião.

Por que razão não se divorciara então?

Apenas porque a lei portuguesa na época não permitia o divórcio contra a vontade de um dos cônjuges, antes de decorridos seis anos sobre a separação de facto, como era o caso (a primeira mulher do político opôs-se ao divórcio), tendo Sá Carneiro de esperar ainda mais dois anos até o poder fazer (Snu estava já divorciada do seu primeiro marido).

Apesar disso, ao contrário do que os seus opositores poderiam esperar e mesmo contra a opinião de alguns dos seus apoiantes, o primeiro-ministro assumiu publicamente Snu como a sua mulher, que esteve sempre presente ao seu lado em todos os atos públicos mais importantes, oficiais e protocolares. Ou, pelo menos, em quase todos.»


A propósito da mesma circunstância, há outro texto que explica bem o caso. É o artigo de Fernanda Câncio, "Que diria Sá Carneiro?", no DN de 4 de setembro de 2009, de onde retiro este excerto:

«Portuense, católico, oriundo de uma família abastada, Francisco Sá Carneiro era casado e pai de cinco filhos. Em 1976 conheceu a editora Snu Abecassis, num almoço com a poetisa e então deputada do PPD Natália Correia, que teria anunciado ao político ir-lhe apresentar a mulher da sua vida.

Snu, mãe de três filhos, era divorciada. Sá Carneiro apaixonou-se e foi viver com ela, na casa dela, com os filhos dela. Um dos seus filhos acompanhou-o. A mulher de Sá Carneiro recusou dar-lhe o divórcio, que então, pós-revisão da Concordata (efectuada em 1975), era já possível em casamentos católicos. Sá Carneiro e Snu passaram pois a viver em união de facto. Numa sociedade em que os divorciados eram olhados de lado e as aparências de "respeitabilidade" e moral católica mantidas laboriosamente, um político de centro-direita, que fez em 1979 uma aliança com o democratas-cristãos de Freitas do Amaral e o Partido Popular Monárquico de Gonçalo Ribeiro Teles e com ela ganhou as eleições, não só vivia numa situação que muitos qualificavam de "pecado" como teve a extraordinária coragem, vistas as circunstâncias, de a assumir. Na época em que Sá Carneiro foi líder partidário e primeiro-ministro a regra não era, como hoje, a da abjecta devassa pública das vidas privadas por publicações especializadas nessa intrusão que têm o despudor de invocar para esse efeito o direito à liberdade de expressão; a regra era a de olhar para o outro lado - desde que, bem entendido, "as coisas fossem feitas com discrição". Sá Carneiro não quis ser discreto, quis ser directo. Quis mostrar que o seu conceito de união e de família rimava com a sua liberdade e não dependia da aprovação dos outros. Consciente do risco que corria e do caldo cultural em que se movia, confrontava os seus colaboradores com a sua opção, tornando claro que trabalhar com ele era aceitá-la . Chegou mesmo a dizer, em 1977: "Se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo."»


Família "natural"? Não. É mais retrocesso artificial. Oportunismo eleitoral. A política como teatro de guerra. É isso que vemos.


E temos de recusar. Combater. Contrariar.



Porfírio Silva,10 de Abril de 2024
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3.4.24

Sr. Primeiro-Ministro, a campanha eleitoral acabou!



Ocasionalmente, na minha função de Director do Acção Socialista, escrevo o editorial da edição digital diária. Foi hoje o caso, atendendo à tomada de posse, ontem, do XXIV Governo Constitucional, chefiado por Luís Montenegro. Deixo, aqui, esse texto, para registo.

***

Os dois discursos proferidos ontem na tomada de posse do XXIV Governo Constitucional constituem, em conjunto e em contraste, uma peça política relevante.

O elemento central do discurso do Presidente da República é aquele segmento onde Marcelo Rebelo de Sousa enuncia os quatro fatores de complexidade do mandato do Governo: o panorama internacional, a governação económica e social interna, a base de apoio político, o tempo disponível.

Seria útil analisar aqui a explanação de todas essas razões – designadamente, quando, ao lembrar que o mundo está perigoso e pode piorar, o PR deixou por mencionar que, precisamente, o Governo cessante enfrentou, nos últimos anos, duas crises de dimensões gigantescas, uma encavalitada na outra: uma pandemia, uma crise de saúde pública de dimensão nunca antes experienciada por nenhum ser humano vivo; e uma guerra na Europa, com um impacto brutal na vida das pessoas, que espoletou uma crise inflacionária sem precedentes neste século, sendo de sublinhar que nenhuma dessas crises se deveu à ação do Governo ou dos portugueses. Mas, para economizar discurso, concentremo-nos no fator “base de apoio político”.

Nessa alínea, Marcelo Rebelo de Sousa, dando por adquirido o apoio presidencial, diz quatro coisas relevantes.

Primeiro, já que o Governo “não conta com apoio maioritário na AR”, então, “tem de o construir”. Isto é, a responsabilidade de acrescentar peso à exígua maioria parlamentar relativa é uma responsabilidade que o Presidente atribui ao Governo – o que parece evidente, já que desejou e assumiu a tarefa de governar.

Segundo, há domínios de “convergências mais prováveis”, que são o que designou por “questões de regime”: “política externa, de defesa, europeia, financeira de repercussões internacionais, ou de compromissos eleitorais semelhantes”. São domínios onde a incapacidade de decidir pode afetar diretamente o interesse nacional, inclusivamente expondo o país ao incumprimento de obrigações internacionais e ao risco de “fazer fraca figura” perante os nossos parceiros. Diríamos que este é o perímetro da oposição responsável, que aceita compromissos – com um Governo que também aceite compromissos.

Terceiro, há campos de “convergências menos prováveis”, sendo aí que “o diálogo tem de ser muito mais aturado e muito mais exigente”. Não são especificados quais os itens que fazem parte deste conjunto – o que é natural, em democracia, onde se reconhece a importância da diferença funcional entre governo e oposição.

Quarto, há um domínio de dificuldade agravada quanto à possibilidade de convergência: “reformas estruturais ou Orçamentos de Estado”, onde essa exigência de diálogo “é ainda de mais largo fôlego” – diálogo que, como enunciou o PR em primeiro lugar, é uma responsabilidade cuja iniciativa cabe ao Governo.

Se a cerimónia de tomada de posse do Governo chefiado por Luís Montenegro podia ter revelado algum sinal de esperança para o funcionamento do nosso regime democrático, ele deveria vir de um discurso onde o Primeiro-Ministro respondesse pela positiva ao desafio exposto pelo Presidente da República. Só que, olhando para o que realmente se passou, Luís Montenegro, manifestamente, não ouviu, ou não foi capaz de ouvir, ou não foi capaz de corresponder, ao que Marcelo Rebelo de Sousa acabara de expor.

O Primeiro-Ministro Luís Montenegro não lançou nenhuma ponte para a oposição. Pelo contrário, foi agressivo até para o Governo cessante, apesar da atitude de elevação institucional que o Primeiro-Ministro cessante, António Costa, manteve durante toda a fase de transição, e foi agressivo também para o PS, que tem revelado uma atitude responsável e construtiva desde o momento inicial deste ciclo político pós-10 de março. Luís Montenegro não deu qualquer sinal de procurar ir ao encontro de qualquer preocupação do PS.

Luís Montenegro, no primeiro dos seus discursos como chefe de governo, ensaiou até uma revisão informal da Constituição, uma revisão instantânea e unilateral, querendo atribuir um significado institucional espúrio ao facto, há muito tempo anunciado, de que o PS não apresentará moção de rejeição do programa de governo e tão-pouco votará tal documento se apresentado por outro partido. Faz isso quando diz – não por descuido na oralidade, porque estava escrito o discurso – o seguinte: “Não rejeitar o Programa do Governo no Parlamento não significa apenas permitir o início da ação governativa. Significa permitir a sua execução até ao final do mandato ou, no limite, até à aprovação de uma moção de censura.” Esta “inovação constitucional” improvisada atribui consequências políticas inusitadas à decisão do PS de não bloquear a entrada em funções do governo minoritário. Ao arrepio do texto constitucional, tem o condão de inventar uma regra parlamentar: só se pode ser oposição apresentando uma moção de censura, não há outras formas de fazer oposição. Luís Montenegro parte para a governação com uma regra bizarra em mente: a relação entre governo e oposição rege-se pelo princípio do tudo ou nada. Ora, esse é precisamente o caminho contrário e contraditório com qualquer ideia séria de diálogo, de concertação, de compromisso. Essa via negativa fica denunciada quando o Primeiro-Ministro recupera, no seu discurso escrito e previamente preparado, o “deixem-nos trabalhar” de outros tempos. É um discurso que responde “não” ao desafio de diálogo e convergência proposto minutos antes pelo Presidente da República.

Seria bom que todos os democratas tivessem presente, quando evocam, exclusivamente em seu favor, a “vontade dos portugueses”, o seguinte: a vontade dos portugueses é plural; é na sua pluralidade que o Parlamento representa a cidadania; o PSD e o PS têm o mesmo número de deputado na Assembleia da República e não se pode pedir a nenhum deputado que esqueça os seus compromissos eleitorais. Luís Montenegro começou o seu mandato com um discurso onde, no essencial, deixou uma mensagem perturbadora, que se poderia resumir assim: “a oposição desta legislatura não pode fazer oposição como eu fiz oposição na legislatura anterior”. É tempo de o Sr. Primeiro-Ministro entender que a campanha eleitoral acabou e é já tempo de assumir, e não alijar, as suas responsabilidades próprias.


Porfírio Silva, 3 de Abril de 2024
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13.3.24

RECOMEÇAR, ONDE O POVO DECIDIU

23:41



No passado dia 11 de março, o órgão oficial do PS, o Acção Socialista, na sua versão digital diária, retomou a sua presença na esfera pública com identidade plena, isto é, com página própria e autónoma, o que já não acontecia desde junho de 2021. Desde que fui eleito para diretor do Acção Socialista que tinha fixado o dia a seguir às eleições legislativas antecipadas de 2024 para dar esse passo, o que se concretizou.
Nesse dia, entendi que essa edição deveria contar com um editorial do diretor - obviamente, marcado pela circunstância pós-eleitoral. Para registo, reproduzo aqui esse texto.

O Acção Socialista Digital diário pode ser consultado em https://accaosocialista.pt 


RECOMEÇAR, ONDE O POVO DECIDIU

O povo votou. Em eleições livres, umas vezes ganha-se, outras vezes perde-se. Desta vez, o PS não tem maioria e não tem condições para congregar uma maioria parlamentar e social funcional para governar o país. Não há maioria à esquerda e entrar no jogo da AD seria trair o nosso programa, as nossas propostas e a nossa base social de apoio. Em coerência – como, aliás, fizemos em 2015, sob a liderança de António Costa – não vamos inviabilizar a governação de quem ficou em primeiro lugar sem termos condições para oferecer uma solução alternativa. Vamos, pois, ser oposição: respeitamos o papel que o povo nos deu. Em democracia, ser oposição é uma função nobre e decisiva. O Secretário-Geral do PS, Pedro Nuno Santos, deixou isso muito claro logo na noite eleitoral: seremos oposição, não deixaremos esse papel para a extrema-direita, e é na oposição que vamos reconstruir a nossa relação com os portugueses a quem devemos a construção diária deste país.

 

O aspeto mais positivo destas eleições legislativas foi termos feito recuar ainda mais a abstenção e termos conseguido uma participação eleitoral acima dos padrões dos últimos anos. Independentemente do resultado, esse é um vetor indiscutivelmente positivo desta dinâmica e temos de trabalhar nessa base para aprofundar o nosso regime onde o povo é quem mais ordena.

A direita acede à oportunidade de governar em condições económicas e financeiras excecionais: há problemas difíceis para resolver (como o PS afirmou, sem tibieza, na campanha), mas a governação socialista deixou os meios e as oportunidades para permitir a sua superação: não apenas os recursos, mas também os instrumentos. Em muitos casos, a direita só tem que não estragar e deixar que se continue a implementar o que deixamos em movimento. Vamos lá ver se a cegueira ideológica não os impede de entender isso.

Depois de termos assumido responsabilidades em tempos excecionalmente desafiantes, com uma pandemia que ultrapassou em risco de saúde tudo o que qualquer humano vivo conhecera e com uma guerra na Europa que julgávamos impossível e causou uma crise inflacionária que não testemunhávamos há décadas, a direita acede ao poder com uma situação económica em que temos mais liberdade face aos mercados financeiros, com uma inflação a retomar a normalidade, com uma população mais qualificada para ajudar o país a dar um salto em frente e com os recursos para resolver problemas complexos e aflitivos para muita gente – como na habitação, onde o esforço de longo prazo, feito pelo PS, permitirá agora muitas inaugurações…

Quer isto dizer que não cometemos erros? Cometemos, certamente. Não seria capaz de fazer aqui uma lista dos mesmos. Desde logo, porque me falta sabedoria para tanto, mas, igualmente, claro, porque ter feito parte do número dos que erraram não me ajuda nessa tarefa… De qualquer modo, e porque esta foi uma eleição para deputados e deputadas à Assembleia da República, assinalo, neste capítulo, o seguinte. Convém nunca desvalorizar o papel de reais representantes dos povos e dos territórios que todos os deputados são. Alguns deputados podem não ser brilhantes a discursar, podem não ser mestres de retórica e, por isso, não acederem ao reconhecimento mediático, mas todos, e no seu conjunto, conhecem as suas terras, as suas gentes, as disfunções que atrapalham a nossa vida coletiva, as insuficiências opacas dos serviços, as revoltas e injustiças sofridas ou percebidas – e, assim sendo, os parlamentares mereciam ser ouvidos com mais atenção e com mais cuidado, num país onde a mediatização excessiva do processo político favorece a excessiva governamentalização da ação política e uma subalternização indevida da função parlamentar. A reconciliação do povo com a política, com a democracia e com os socialistas, de que falou apropriadamente o Secretário-Geral do PS na sua claríssima intervenção na noite eleitoral, também passará por aí, é minha convicção. Não parece desadequado dizê-lo quando se prepara uma nova legislatura.

Porfírio Silva


(Editorial do Acção Socialista Digital diário, edição nº 1461, de 11 de março de 2024)


O Acção Socialista Digital diário pode ser consultado em https://accaosocialista.pt 


Porfírio Silva, 13 de março de 2024
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