17.3.12

enigmas da nossa vida comum.


Porque é que os autores do blogue 31 da Armada, quando, a 10 de Agosto de 2009, subiram à varanda dos Paços do Concelho de Lisboa e hastearam a bandeira azul e branca, não restauraram a monarquia, como disseram ter feito, reclamando que foi precisamente com esse gesto que em 1910 foi proclamada a República?


Tem o leitor uma resposta pronta para aquela questão ali acima?
Não tem? Tem? Confronte a sua resposta, ou a sua ausência de resposta, com a minha.
Para isso, reproduzo os parágrafos 119, 120 e 126 do meu livro Podemos matar um sinal de trânsito? (Esfera do Caos).

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119. A nossa mente anda pelo mundo, essa é a questão. Como diz Andy Clark, é preciso voltar a ligar cérebro, corpo e mundo. Dizemos nós: ligar matéria e pensamento na nossa história de pertença comum ao mundo.
Uma pessoa entra numa sala às escuras e quer ligar as luzes: o que tem a fazer é accionar o interruptor apropriado, que normalmente está colocado junto à entrada dessa sala. Como é que mudar a posição daquela lingueta naquela peça faz com que as luzes se acendam? Há toda uma preparação daquele recanto do mundo físico que é aquela sala, visando que aquele gesto tenha tal resultado. O circuito eléctrico que ali foi instalado permite que a corrente de electrões, ao passar pelo filamento de metal fino que está dentro da lâmpada, excite esse filamento de tal modo que é emitida a radiação intensa a que chamamos luz. O interruptor faz o que o seu nome indica: interrompe a corrente eléctrica, interrompe a excitação dos electrões e a libertação de fotões, evitando que “se faça luz”. Quando “ligamos a luz” no interruptor fazemos com que o interruptor deixe de interromper, fechamos (completamos) de novo o circuito e deixamos que aconteça o que estava preparado para que acontecesse. Essa preparação do mundo físico pode, em determinadas situações, colocar o interruptor a grande distância da lâmpada ou das lâmpadas que serão acesas.
É preciso notar o seguinte: modificar a posição da lingueta do interruptor, em si mesmo, não acende luz nenhuma. Nem apaga, claro. Parece estranho que se diga isto? Então, experimente ir a uma loja de material eléctrico, pegue num dos interruptores que estão lá à venda, accione-o: verá que não se acende luz nenhuma. Mesmo que esse interruptor seja igualzinho àquele com que acende as luzes da sala em sua casa. Isto quer dizer que accionar o interruptor, só por si, não acende as luzes. Accionar o interruptor só acende a luz se o interruptor estiver inserido numa certa organização de uma parte específica do mundo físico. Uma forma de falar do que aqui se passa é dizer que temos uma acção veicular e uma supra-acção. A supra-acção, aquilo que se pretende realmente que aconteça no mundo como resultado do que fazemos, é acender as luzes. A acção veicular, o que concretamente temos de fazer para que aconteça o que pretendemos, é mudar a posição da lingueta no interruptor. O que faz com que aquela acção veicule a supra-acção intencionada é uma certa organização do mundo físico externo naquele contexto (o funcionamento do circuito eléctrico). Note-se que não é preciso ser electricista, nem saber nada de electricidade, muito menos ter sido o técnico responsável por aquela instalação, para ser capaz de acender as luzes de acordo com todo este esquema – uma vez que ele tenha sido instalado por quem sabe, em mais uma manifestação da divisão social do trabalho.

120. Pensemos agora numa situação muito diferente. Um casamento. Mais precisamente, o casamento do Pedro e da Maria. Além dos noivos, estão presentes alguns amigos e certas pessoas que têm certos papéis específicos a desempenhar neste acto: testemunhas e (vamos supor que é um casamento católico) um padre, que (diz-se) é quem vai fazer o casamento. Como é que o padre casa o Pedro e a Maria? O padre diz certas palavras, previstas em certas disposições da igreja; pede aos noivos que digam certas palavras, também previstas nas fórmulas canónicas; executa um determinado conjunto de movimentos corporais (frequentemente combinados com palavras, como no caso daquilo a que se chama “bênção”), pedindo aos noivos que executem outros determinados movimentos; e depois declara que, pronto, estão casados. Aquele conjunto de movimentos e palavras, naquele formato, valeu, para aquelas pessoas ali presentes e para muitas outras que disso serão informadas daí para o futuro, como o ofício de casar Pedro e Maria.
Aquele conjunto de movimentos e palavras constitui a acção veicular que serve a supra-acção, que é o casamento daqueles noivos. Nesse sentido, aquelas palavras e gestos não casam ninguém: mexer no interruptor, só por si, não acende a luz. Aquele conjunto de movimentos, realizado por outras pessoas e noutras circunstâncias, poderia ser apenas uma encenação. Suponhamos que se tratava de um casamento muito importante, de um príncipe e uma princesa, por exemplo, e que a pressão para que tudo resultasse espectacular no momento da verdade, frente às câmaras, impunha um ensaio geral. No ensaio geral tudo é feito como no acto solene propriamente dito, salvo algumas interrupções para corrigir movimentos e palavras. Mesmo fazendo no ensaio geral tudo como será feito na verdadeira cerimónia, envolvendo os mesmos actores principais, o ensaio geral não é o casamento, das mesmas palavras e gestos não resultam os mesmos efeitos institucionais. Curiosamente, os ensaios gerais de certos acontecimentos sem este carácter institucional podem ser vistos de outra maneira: o ensaio geral de uma ópera, na véspera da estreia, não é a estreia – mas é a ópera. Pode ouvir-se a mesma música e o mesmo canto, sem tirar nem por, desta vez sem interrupções, sequer. Não é a estreia, porque “ser a estreia” é um efeito institucional; mas é a ópera, em todo o seu esplendor.
Temos, então, que aquele conjunto de gestos e palavras do casamento, realizado fora das circunstâncias apropriadas, pode ser uma mera encenação. Porque aquelas palavras e gestos não casam ninguém: mexer no interruptor, só por si, não acende a luz. Porque aquele conjunto de movimentos e palavras constitui apenas a acção veicular que serve a supra-acção, aquela que é verdadeiramente intencionada, que é o casamento daqueles noivos. Essa mera encenação pode acontecer numa cena de teatro onde se represente um casamento. No filme, de Manoel de Oliveira, “O Princípio da Incerteza” (2002), há uma cena de casamento. Um casamento católico. Naturalmente, na cena há um actor que representa o papel de um padre, o oficiante nessa cerimónia, e outros que representam os noivos, e outros ainda a assistência. Ninguém fica mais ou menos casado por ter participado como actor nessa cena. Contudo, um dos actores que representam essa cena é um padre. Mais precisamente, quem faz de padre nessa cena é realmente um padre, na vida real, fora do filme. Essa pessoa, que aí faz de padre, poderia casar aquelas pessoas noutras circunstâncias – mas do que se representa num filme não decorrem consequências desse tipo. Tudo o que se passou no filme é diferente de um verdadeiro casamento. A diferença não está em nenhum dos movimentos, em nenhuma das palavras, nem sequer nos poderes das pessoas envolvidas. A diferença está na preparação do mundo institucional que enquadra aquela acção. Daquele conjunto de pessoas no filme não se podia dizer que contassem com os mesmos aspectos externos que contavam os que participavam no casamento de Pedro e Maria. A diferença é o contexto institucional. A diferença é institucional.
Pode parecer que para fazer aquele casamento (dados os agentes que serão “objecto” do casamento) basta o padre, uma pessoa desempenhando um certo papel. O casamento parece um exercício de uma certa interacção directa entre certas pessoas, em que a supra-acção é realizada por uma única pessoa. Dá a ideia que as acções institucionais são acções envolvendo múltiplos agentes numa certa coordenação, mas em que a acção propriamente dita é realizada por um único agente. Esta é uma aparência enganadora. O paralelo com a inversão do interruptor para acender a luz esclarece o erro: o circuito eléctrico não está no local por acaso, nem pela ordem natural do mundo. Está no local porque outros agentes previamente prepararam o ambiente. Eles foram capazes de preparar assim o ambiente por antes terem aprendido como funcionam os circuitos eléctricos, e foi possível ensinar-lhes isso porque outros antes tinham descoberto como funciona a electricidade… e assim por diante. Pensar que basta accionar interruptores para fazer luz – é um exemplo da ilusão da interacção directa.

[...]

126. Mas este mundo onde podem acontecer coisas, em resultado das nossas acções, que de modo algum esperávamos que tivessem lugar (como no caso do caminho na relva), e onde podemos até certo ponto impor uma realidade institucional à realidade natural (como no caso da hora legal), é também um mundo que, noutras ocasiões, nos resiste. Um mundo onde não é fácil mudar as coisas. Atentemos neste caso. Na madrugada de 10 de Agosto de 2009, um grupo de membros do blogue 31 da Armada empreendeu uma “restauração da monarquia” em Portugal. O texto publicado nesse blogue pelas 15:00 horas desse dia rezava assim: “Daqui posto de comando do Movimento do 31 da Armada. Durante a madrugada de ontem, e apesar da forte vigilância policial, elementos do 31 da Armada (Darth Vaders) subiram heroicamente até à varanda dos Paços do Concelho [de Lisboa] e hastearam a bandeira azul e branca. Há 99 anos atrás, no dia 5 de Outubro, um punhado de homens, contra a vontade da maioria dos Portugueses, tinha feito a mesmíssima coisa proclamando assim a república. O resto do país ficou a saber por telegrama. Hoje, aproveitando as férias de verão e numa inédita acção de guerrilha ideológica, foi restaurada a legitimidade Monárquica. Podem permanecer calmos nas vossas casas: foi restaurada a Monarquia. E o país fica a saber pela internet. A acção foi devidamente filmada e o vídeo será disponibilizado ao final da tarde. É o contributo do 31 para as comemorações do centenário da república.”
Tratou-se, evidentemente, de uma bem sucedida acção de propaganda política – e, também, de publicidade ao blogue, que frequentemente agita as suas ideias com grande imaginação e brilho. De qualquer modo, não é para fazer publicidade aos ideais monárquicos que trago aqui este caso. Trago-o por ele ser uma oportunidade de aprendizagem do funcionamento do nosso mundo institucional. É claro que os autores da façanha sabiam o que estavam a fazer. Quando escreviam no blogue, numa comunicação posterior à acima citada, “Dizem-nos que a bandeira já foi retirada. Durante uma noite e uma manhã houve monarquia em Portugal”, sabiam, claro, que não tinha havido monarquia nenhuma durante aquelas horas que demoraram os serviços camarários a retirar a bandeira que fora de Portugal durante a monarquia. Segundo pude ler num espaço da Causa Monárquica, a acção foi elogiada por D. Duarte de Bragança, que disse estar com ela muito satisfeito. Parece que D. Duarte apenas queria apoiar o facto de a acção “reforçar o sentimento de patriotismo” e contribuir para a “divulgação do que é a história de Portugal”.
Só que, afinal, o que autoriza a pensar que a 5 de Outubro de 1910 a República foi proclamada com o hastear da bandeira naquele sítio e, agora, o hastear da bandeira do Portugal monárquico não restaura a monarquia? É que, quando Pedro e Maria foram casados por aquele sacerdote naquela circunstância, as outras pessoas (as que podiam interferir com esse facto) tinham sido mobilizadas para se comportarem de acordo com essa modificação do estatuto de Maria e Pedro. Se ninguém ligasse nenhuma ao que o padre, o Pedro e a Maria estavam a dizer e a fazer, e toda a gente continuasse a tratá-los como antes, e a ignorar quaisquer tentativas deles para se comportarem de maneira diferente em consequência daquele acto – não haveria casamento algum, como acontecimento dentro da sociedade. Seria como se Pedro e Maria e aquele sacerdote casamenteiro estivessem na cena do casamento no filme de Manoel de Oliveira: acabada a filmagem da cena, ninguém se comportava como se tivesse havido casamento. A 5 de Outubro de 1910 houve implantação da República, condensada naquele hastear da bandeira, não pelo hastear da bandeira como acto isolado, mas pelo vasto conjunto de acções que antecederam esse gesto – e, principalmente, pelos efeitos que teve no comportamento subsequente de milhões de pessoas. Nada disso se passou à volta do hastear da bandeira monárquica a 10 de Agosto de 2009 – e, por isso, não houve monarquia nenhuma durante essas horas.
Em boa verdade, tratou-se apenas de uma acção publicitária. Não chegou, sequer, a ser uma tentativa de falsificar uma restauração da monarquia.

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Abordo muitos outros "enigmas" da nossa vida social e institucional, sempre com exemplos práticos apresentados de forma simples, neste livro: