15.9.11

uma história pouco católica.


Hoje vou fazer algo que não me dá nenhum prazer. Contar um episódio tão vergonhoso que preferia deitá-lo para trás das costas. Um episódio no qual estou pessoalmente envolvido. Escrevo porque acho que tenho esse dever. Um dever de cidadania, fazer saber que há coisas que se passam entre nós.

No passado mês de Março tomei conhecimento, por uma lista de filosofia, de um Aviso da Faculdade de Ciências Humanas (FCH), da Universidade Católica Portuguesa (UCP), segundo o qual estava aberto um procedimento para seleccionar um candidato ao preenchimento de uma vaga de leccionação na Licenciatura em Filosofia dessa instituição.

Considerada a precariedade da minha actual actividade de investigador, e depois de informar o coordenador do meu laboratório, apresentei (dentro do prazo, até 2 de Maio) a minha candidatura. O processo constava de uma fase documental, que incluía a programação de uma cadeira do curso, e, chegando lá, de uma entrevista. Fui à entrevista, no início de Junho. Parece que se apresentaram 14 candidatos, 11 dos quais foram entrevistados. Depois de um contacto informal, confirmou-se, por uma carta da FCH datada de 20 Junho, que tinha sido eu o candidato seleccionado. Apesar de prevenido de que teria de esperar o contacto da Reitoria para assinar o contrato, comecei imediatamente a preparar o primeiro semestre, incluindo tomar contacto com a plataforma de blended-learning usada na instituição. Os serviços enviaram-me, também prontamente, o calendário dos dois semestres de 2011/2012 e a distribuição do trabalho docente, onde constava já o rol de disciplinas que me caberia leccionar nesse período.

Cabe aqui acrescentar que, quando me foi comunicada verbalmente a minha contratação, fui informado de que o contrato continha uma cláusula que me obrigava a respeitar a instituição UCP e a instituição Igreja Católica, sem que isso conflituasse de algum modo com a minha liberdade de opinião.

No dia 4 de Julho, recebi um e-mail do coordenador da área de filosofia, informando-me, basicamente, “de que, tendo em conta as restrições orçamentais a que a Universidade se encontra sujeita, não haverá lugar para novas contratações para o ano lectivo 2011-2012, para lá das que resultam de contratos já celebrados com os docentes até esta data. Esta situação, que contraria as expectativas que foram criadas à Área Científica de Filosofia ainda no início deste ano civil, impede, pelo menos para já, a sua [minha] contratação”.

Reagindo imediatamente a esta novidade, usei um canal não institucional para fazer chegar directamente ao Reitor da UCP um pedido de aclaramento da situação. Passadas poucas horas, recebi a resposta: eu não iria ser contratado por ter subscrito um abaixo-assinado “contra a vinda do Papa a Portugal”. Ainda nesse dia, tendo coincidido com o Magnífico Reitor numa recepção diplomática (onde estava como acompanhante), ouvi de viva voz, por sua iniciativa, uma reiteração do motivo (com comentários suplementares que me dispenso de divulgar). Começou aí, também, a operação de justificar que não me tinham mentido anteriormente (horas antes), quando me avançaram motivos orçamentais. Noutra fase das explicações, foi-me dito que um professor da casa tinha preparado um dossiê com textos da minha autoria, dossiê esse que, entregue à Reitoria, tinha ditado o meu afastamento. Talvez não seja necessário, mas lembro que o Aviso do procedimento de selecção não continha nenhuma “cláusula ideológica”.

O que escrevi acima é da ordem da pura factualidade. Em termos de interpretação, deixo o essencial ao leitor – até porque todas as peças do meu processo estão publicadas neste blogue. Foi, aliás, um trabalho “de investigador” sobre o conteúdo deste blogue, ajudado pelo meu perfil no facebook, combinado com uns comentários anónimos aqui neste espaço, que deu à luz o dossiê do pequeno inquisidor. Mas sempre digo o que segue, para os mais recentes por aqui, que não tenham acompanhado as minhas posições em questões de religião.

Tenho criticado, sem dúvida, várias posições e acções da Igreja Católica. (Haverá debaixo do sol alguma coisa que eu não tenha criticado neste blogue?) Não confundo isso com respeito institucional. Eu respeito a universidade que me recebe todos os dias, mas nunca me passaria pela cabeça que alguém levasse ao Reitor, ou ao Director do instituto, um dossiê com escritos meus num blogue para o ajudar a decidir qualquer assunto académico. Nem sonharia que qualquer crítica minha ao governo da nação, ou ao Ministro da Ciência, fosse encarada como desrespeito pelo país, que em última instância é a quem pertence essa universidade pública. Já alguém me disse que eu, que fui um católico activo durante muitos anos, mas há muitos anos no passado, estou enganado acerca da actual Igreja Católica, que está muito mais longe do espírito do Vaticano II do que eu sou capaz de imaginar. Talvez seja isso. Pode até parecer que isto foi ingenuidade minha: se eu critico o catolicismo oficial, como poderia dar aulas na UCP? Não é assim que vejo as coisas: não me candidatei a professor no curso de Teologia, admito que poderiam achar estranho um agnóstico querer ser professor de teologia numa universidade católica. Tenho uma ideia da liberdade de pensamento que pode ser alheia a escrevinhadores de dossiês, mas da qual não abdico. (De passagem: já terão deitado o meu dossiê para o lixo, ou continuo a estar fichado nos serviços da Reitoria?)

Cabe notar que a petição que subscrevi não era contra a vinda do Papa a Portugal, mas sim contra o facto de altos magistrados do Estado português confundirem e misturarem a condição de Chefe de Estado (do Vaticano) com a condição de líder religioso. Invocar essa minha posição para tomar tal decisão equivale a isto: pessoas, actuando (acham elas) na defesa política de um Chefe de Estado estrangeiro, atacam os meus direitos e liberdades como cidadão de Portugal.

De qualquer modo, se o Vaticano, recentemente, chamou o cardeal de Lisboa para lhe puxar as orelhas, por causa de uma entrevista onde uma frase ocasional versava a ordenação de mulheres, provocando um "esclarecimento" escrito do Patriarca, onde este se verga à ortodoxia num acto de "humildade" pública, talvez fosse estultícia da minha parte julgar que poderia ter mais liberdade de pensamento como professor do que aquela de que goza o Magno Chanceler da UCP.

Talvez este episódio até dê gozo a um ou outro opinador que desengrace com a minha falta de paciência para a crítica sistemática e radical a tudo o que seja religião, igreja, Papa, etc. Pode até ser uma espécie de “vingança involuntária” para ilustres comentadores que episodicamente se irritam com a minha visão mitigada do fenómeno religioso. Espero, com franqueza, que a minha posição sobre qualquer dos tópicos da questão “religião” não mude por causa deste episódio pessoal. Sempre tentei, e quero continuar a tentar, esse mínimo de liberdade que consiste em sermos capazes de pensar no mundo sem darmos demasiada importância às nossas contingências particulares.

Julguei que era meu dever de cidadania dar pública notícia deste caso. Para que se saiba o que as coisas são. Está feito.