12.12.07

O filósofo Cronenberg

Escrevemos aqui, há dias, que o último filme de David Cronenberg não nos parece, como alguns críticos têm dito, uma ruptura com os seus temas clássicos. E afirmámos que a tematização do corpo como matéria do espírito, bem como a tematização múltipla da metamorfose como condição, liga “Promessas Perigosas” à teia das deambulações permanentes de Cronenberg. Revisitamos agora a questão, desta feita olhando para alguns dos filmes passados desse realizador e procurando, assim, “justificar” a nossa tese naquele apontamento anterior.
Não temos a pretensão de uma visita (mesmo que breve) ao percurso fílmico de David Cronenberg. A ideia é lembrar alguns dos filmes que vimos do realizador Cronenberg e apresentá-lo como um filósofo do corpo, do corpo mutante: por dentro e por fora; na carne e nos neurónios; no jogo solitário com a transformação genética, tanto como no jogo social que usa diferencialmente os mecanismos de máscara; contra a máquina ou misturando-se com a máquina; entrando “de corpo e alma” na realidade virtual de imersão. Pensamos assim clarificar porque vemos o último Cronenberg como uma continuação.



Em “Crimes of the Future” (1970), a “doença de Rouge”, provocada pelos cosméticos, fez desaparecer todas as mulheres. Enquanto Adrian Tripod nos leva a percorrer uma série de instituições (com nomes como Instituto de Doenças Neo-Venéreas, Casa da Pele, Import/Export Metafísico) à procura de solução para o problema, essa ausência de mulheres vai fazendo emergir o lado andrógino dos homens e vai deixando emergir novas formas de relacionamento.


Em “Shivers” (1975), um médico conduz uma bizarra investigação que o leva a implantar parasitas dentro do corpo das pessoas para substituir órgãos vitais doentes. Vemos os enormes parasitas a espalharem-se por todo condomínio fechado de luxo Starliner, seja por via de ataques violentos, seja limitando-se a introduzir-se nos corpos das pessoas por algum dos respectivos orifícios. O facto de provocarem uma explosão de desejo sexual nos seus portadores multiplica as possibilidades desses parasitas encontrarem novos portadores. É a orgia no prédio. E, no final, vemos que todos juntos saem de carro à conquista da cidade, como no início de uma expedição de zombies.


Em “A Ninhada” (1979), a senhora Nola Carveth, em processo de divórcio/separação de Frank Carveth, está internada na clínica de um psiquiatra “inovador” e aí a sua raiva cria uma ninhada de pequenos monstros, umas criaturas deformadas que matam tudo o que ela odeia. A sua raiva comanda as crias que ela foi parindo, de forma não humana, mas que saem do seu corpo. O batalhão de pequenos assassinos, que habitam o anexo da sua cabana de madeira, corporiza a raiva e torna físicas as suas consequências.

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Em “Scanners” (1981), há uma espécie de “sondas” humanas, capazes de dominar telepaticamente outros humanos, que se dividem em duas organizações: uma deve ser “boa”, a outra deve ser “má”, mas torna-se por vezes difícil saber qual é o quê. Cada uma das organizações procura suplantar a outra por diversos meios, uma está até a procurar expandir-se “alimentando” os bebés de “sondadoras” grávidas. Na luta entre o bem e o mal (não se sabendo qual é o quê) revela-se que os dois grandes sondadores/telepatas, os dois mais poderosos, os que foram “alimentados” pelo medicamento durante mais tempo, são irmãos de sangue. Lutam – por telepatia – até que um é destruído e o outro sobrevive. O que sobrevive, pretendendo ser o “bom”, faz permanecer a dúvida que nunca se desfez durante todo o filme: onde está o “bom” e o “mau”? Quem decide tão magna questão, afinal – não apenas no filme, mas no mundo?


Em “Videodrome” (1983), o corpo embrenha-se numa luta desesperada com o banal televisor doméstico. É que as imagens, que todos sabemos poderem influenciar os comportamentos das massas – mas esse é um mecanismo cultural – tornam-se aqui causa directa, fisiológica, de comportamento individual. Pode inserir-se uma cassete vídeo numa ranhura na barriga daqueles humanos e obter assim um efeito de programação do respectivo comportamento. Porquê ficar espantado com isto? Será menos mau ser pressionado através de controlo mental do que ser pressionado por uma cassete nas entranhas? A diferença que isso faz é só o nojo pelo sangue? Mas, nojo por nojo, as emissões televisivas que escondem o mecanismo já são “televisão de sarjeta”, de qualquer modo.


Em “A Mosca” (1986), um corpo humano e um corpo não humano entram em confluência, fruto de uma experiência científica que tem lugar fora dos padrões de prudência que seriam desejáveis. E a mente não fica indiferente à sua base material. Se tivéssemos rodas em vez de pernas teríamos a mesma mente que nos caracteriza na forma actual?


Em “Irmãos Inseparáveis” (1988), os irmãos Beverly e Elliot Mantle, gémeos fisicamente idênticos, mas contudo um exibicionista e outro tímido e recatado, são médicos. Ginecologistas, mais precisamente. Nas relações amorosas exploram a identidade física, partilhando as parceiras à má-fila. Mas um dia isso complica-se, quando Claire se torna um interesse sério para Berverly e este quer a autonomia necessária para prosseguir a relação amorosa. Aí, quando a identidade e a diferença deixam de ser aliadas e se tornam inimigas, quando o que é semelhante na carne repugna à autonomia na mente, quando ser ginecologista não ajuda a lidar com o amor, já não sabemos se não poderemos nós mesmos um dia convencer-nos de que, em vez de sermos unos, somos um par de gémeos desavindos dentro da mesma pele. E, sendo ginecologistas, poderíamos dedicar-nos a inventar instrumentos científicos particularmente engenhosos, e estranhos, para as nossas deambulações...


Em “O Festim Nu” (1991) não há grande novidade: todos sabemos que as drogas fornecem ao corpo certas instruções que se desviam um pouco da relação habitual entre organismo e ambiente. Que as drogas sejam pesticidas, que as máquinas de escrever tenham hábitos estranhos, que certas partes do corpo próprio possam ser dispensadas em certas circunstâncias, que haja ideias a mais no ar ao mesmo tempo para que as possamos acompanhar com um mínimo de apercebimento, isso é pouco mais do que as inúmeras maneiras que nos fornecem as farmácias, ou mesmo os supermercados, para alucinarmos em sonhos suburbanos.


Em “M. Butterfly” (1993) é-nos dado a ver que aquilo que o corpo mostra, ou que o corpo oculta, não é tudo o que há a mostrar ou a ocultar em nós: aquele “M.” do título é ambíguo entre Mr. e Mrs. e isso, que no filme se passa com grande poesia e elevação, é toda uma odisseia para muitos concidadãos e concidadãs que por aí andam.


Em “Crash” (1996) há carros, carros velozes, amantes de carros velozes, acidentes e as próteses que se lhes seguem, corpos, sexo, malucos por sexo em carros velozes, … ou deveria antes dizer “malucos por sexo com carros velozes”? Sem qualquer ponta de pornografia, temos aí uma assumpção mais coerente da loucura automóvel que sofremos nas nossas cidades. Porque não hão-de carros e próteses para a carne viver no mesmo plano? É tudo uma questão de coerência, ou apenas de não desesperar – porque o futuro chega sempre, mais cedo ou mais tarde. Aliás, em Cronenberg, o tempo é sempre outro que não o presente. Talvez não necessariamente o futuro. Talvez a questão não seja “o futuro possível”. Talvez a questão seja simplesmente a de “outros tempos presentes possíveis”. Ou mesmo “outros tempos passados possíveis”.


Em “eXistenZ” (1999) já não se brinca com mecanicismos ingénuos: o que é maquínico e o que é propriamente biológico estão já na mesma família. E, uma vez que a passagem se pode dar pelo jogo, e porque o jogo por via da máquina se nos vai apresentando como inocente, até quase meio infantil, essa fronteira entra-nos pela casa dentro. Nós somos parte da consola de jogo. E quando nos apercebemos já a fronteira entre a máquina e o orgânico passa por dentro de nós e nos remexe na carne. E no espírito, porque a percepção sensível do virtual pode ser exactamente indistinguível da percepção sensível do real. O que, no limite, impede a própria possibilidade de fazermos a distinção entre o real e o virtual.


Em “Spider” (2002) mostra-se um certo número de consequências possíveis de um facto relativamente simples: se a nossa unidade de processamento central nos fornecer, intermitentemente, leituras diversas do mundo, o mundo torna-se para nós verdadeiramente numa intermitência entre vários mundos. E não há objectividade que resista a isso: nem o espectador escapa à dúvida acerca de qual das histórias possíveis esteve a ver. É que, quando a nossa vida se parte em várias peças, e em cada peça os actores fazem coisas diferentes, corremos o risco de nos tornarmos nós mesmos intermitentes, um corpo desligado das identidades narrativas plurais que lhe foram acontecendo.


Já a propósito do anterior filme de Cronenberg, “Uma história de violência” (2005), se pretendia o que agora alguns repetem: que era o fim do ”sujo Cronenberg” e o princípio de outra coisa. Mas o que aí se conta é a história de uma metamorfose reversiva, um re-des-fazer a transformação, o caminho da mutação inversa no desempenho do papel social que parecia classificar um homem como normal, como habitante do habitual. Só que, tal como em “Spider”, já não precisamos que a mutação seja no corpo: ela é igualmente brutal como mutação da mente. O homem velho, que dera lugar ao homem novo, regressa como homem novíssimo de velho – e leva na turbulência a rotina familiar e do lugarejo. Um incidente desfez o sono da larva e despertou, não a borboleta, mas o dragão. E não é impunemente que se vive com um dragão em casa, mesmo que ele pareça morar no corpo padrão de um pai de família. Isto é, lá por Cronenberg não sentir a necessidade de, neste filme, colocar o corpo no centro do processo de mutação, não devemos deixar-nos iludir por isso.


Até porque o lugar do corpo no desenvolvimento da metamorfose regressa, mais uma vez, em “Promessas Perigosas” (2007). Mas disso já falámos em apontamento anterior.